quarta-feira, 31 de outubro de 2007

O nosso crime de não olhar direito



A jornalista gaúcha Eliane Brum foge dos personagens famosos, dos grandes escândalos e eventos. Na contramão do que aparece nas primeiras páginas dos jornais ou chamadas dos telejornais, ela prefere conhecer e revelar as vidas de pessoas “comuns”, as que não são procuradas pela mídia. Eliane prefere olhar para onde ninguém olha e escutar aqueles que ninguém escuta. Seu trabalho é mais uma missão de dar voz e reconhecimento a quem é ignorado. E fazendo isso, ela prova que todo mundo possui algo importante para contar e até ensinar.

“Não existem vidas comuns, só olhos domesticados”. Eliane prega uma verdadeira revolução do olhar. “Olhar para ver é um ato de resistência cotidiana. É duro, a gente não está acostumado, nos ensinaram a ver a imagem como verdade, mas você viu de que ângulo? E deixou de ver o quê?”

Querer ver não é fácil na rotina da cidade grande de pressão, competição, estudo e/ou trabalho que consomem nossas vidas. Requer coragem e disposição. “Decidir olhar é o mesmo que voltar a fazer atividades físicas depois de anos de sedentarismo. Olhar às vezes só requer mudar o ângulo.”

Eliane mostra ainda que não basta olhar, é preciso se aproximar ainda mais das pessoas para realmente descobri-las. Sua frase-lição a seguir vale para os jornalistas e todos nós: “É preciso perguntar para realmente escutar. E escutar é mais que ouvir.”

Eliane prega ainda uma prática de honestidade no diálogo com o entrevistado. Como fazer ele se abrir?, perguntaram da platéia, durante palestra dela no Seminário de Jornalismo Literário, semana passada em São Paulo. Como arrancar a verdade das pessoas? Eliane revela não arrancar nada. Seu segredo é apenas ser digna. “Eu sou bem honesta, digo quem eu sou, porque estou ali. Se ela não quiser falar, eu vou embora.”

Da honestidade e olhar sensível, ela traça os mais belos e profundos perfis do jornalismo brasileiro hoje. Basta ler algum texto dela no vital livro A vida que ninguém vê, coletânea de perfis que ela fazia no Zero Hora, talvez o melhor jornal do país hoje (caso para outro texto, alguém se habilita?). São aulas de metáforas, antíteses e analogias das mais originais já publicadas no país. E quem mais consegue nos emociona no jornalismo hoje que a Eliane?

Emoção, o texto dessa gaúcha tímida e na dela fora de seu ambiente de trabalho (as ruas, matas, rios, favelas etc) talvez cative tanto porque ela não inventa nem se limita a informar histórias. Ela revela histórias. E presta uma homenagem ao seus entrevistados ao mostrar a força da vida e discurso de cada um e também potencializar cada história com sua linguagem que vai tão longe e fundo. A missão árdua ela busca com esmero porque “a coisa mais triste possível é os personagens não se reconhecerem no olhar do jornalista.”

Volto à platéia e outra pergunta, você se inspirou nos textos do Marcos Faerman para formar seu estilo? Não, colegas, a riquíssima linguagem de Eliane, tão poética quanto direto no queixo, tão delicada quanto pungente, só poderia ter raízes na literatura e, claro, na amplitude de seu olhar. Ela se trancava no quarto e só saía dali depois de ler e ler, às vezes mais de um livro de uma tacada só. “Fui uma menina triste, a literatura sempre foi um jeito de agüentar a dor do mundo.”

Foi assim que germinou o mais belo, intenso, crítico e raro texto do jornalismo brasileiro de hoje.
O aprendizado de Eliane foi a boa e velha literatura, uma arte que, incrível, não é disciplina nas faculdades de Jornalismo. Será que algum genial diretor de faculdade acha que se ensina o amor pela Literatura nas escolas, com aqueles catataus chatos e indigestos de obras obrigatórias para o vestibular?
(ZÉ AUGUSTO DE AGUIAR)

* Leiam o texto escutando a canção que tem tudo a ver com o trabalho de Eliane, porque ela conhece o som do silêncio.