sábado, 23 de fevereiro de 2008

Concerto de asfalto


O palco é o metrô Consolação. O Maestro é um transeunte vestido de calça de moletom, blusa de lã colorida e um chinelo preto. Com o vento batendo nos cabelos grisalhos, ele se agacha e finge comandar o dueto. Na verdade, é tudo brincadeira. O “maestro” ali não passa de um espectador.

A trilha sonora é “Por una Cabeza”, de Carlos Gardel. Um tango dançado por Al Pacino no filme “Perfume de Mulher”. De olhos fechados, a música transporta para lugares imaginários onde o tango é mais alto que o barulho do trânsito e o ar é mais leve que a fumaça dos carros. Olhos fechados... Pacino faz um cego no filme, que sente a beleza da música mais intensamente que a sua parceira, por percepção adquirida ao longo de sua vida sem imagens reais. Voltemos ao metrô Consolação. A música é produzida por um dueto que se mistura à paisagem. E quem passa por ele nem sempre pode olhar. A vida apressada não deixa. Mas o corpo e a mente sentem a música, mesmo com a percepção reduzida que traz a rotina.

O Dueto Catarse é formado por Messias e Júnior, juntos há apenas três meses. Messias na viola de corda (ou violino tenor) e Júnior no violino. “A viola é mais gordinha, como tudo que eu gosto na vida. Faz esse som mais gostoso...” explica Messias.

O nome do dueto surgiu de uma aula de história da arte musical que Júnior assistiu. Ele explica que a catarse é o que faz sair do mundo real para algo melhor. E é isso o que querem fazer com a música: transportar as pessoas da Avenida Paulista para dentro de seus acordes.

Messias percorreu um longo caminho antes de tocar no metrô. Morava em São José do Rio Preto, no interior do estado, e aprendeu a tocar com um amigo da igreja. Depois de um tempo já podia ler as claves, “aqueles desenhos, sabe?”, e começou a tocar para o público. O amigo-professor aconselhou que Messias partisse para São Paulo, “onde surgiriam as oportunidades”. O músico não recuou ao desafio e se orgulha das vezes que se apresentou em Guarulhos, no teatro São Pedro e na sala São Paulo.

“Então passei por umas tempestades”. Casou-se aos 19 anos, quando teve sua primeira mulher. “Era muito moleque, não deu certo. Aí entrei em depressão”. Voltou para os braços da família, no interior de São Paulo. Não queria mais nada da vida. “Mas passou. Eu tinha que amadurecer uma hora.”

No entanto, o som na rua não é unanimidade. Existem também aqueles que não gostam e passam por eles torcendo o nariz. “Eu acho que não existe lugar apropriado para tocar. Cada um faz a sua música onde quiser”, diz Messias.

Quer dizer, mais ou menos onde quiser. Tocar dentro do metrô é proibido, mas quando chove não dá para tocar na rua. Logo aparece o metroviário pedindo para o Dueto sair. “É o trabalho dele, temos que sair. Respeitamos a lei, respeitamos o trabalhador que cumpre ordens, mas eles não respeitam a gente”. Um casal oriental lamenta o fim do espetáculo e coloca algumas moedas no case da gordinha. Hoje o trabalho foi pouco, não deu pra chegar nem perto dos setenta reais que Messias e Júnior conseguem diariamente.

Logo, os ouvintes voltam a ser transeuntes e se perdem no meio das pessoas que passam. O ruído dos automóveis aumenta e a trilha sonora volta a ser o mero burburinho.
(Fernanda Barbosa, S.Paulo)

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Como fica o amor nos tempos do (a) cólera?


O filme “O amor nos tempos do cólera” é a prova de que até a história mais piegas pode ser transformada no sentimento mais tocante nas mãos de um grande escritor ou de um grande diretor. Existe algo mais clichê do que falar de amor?

Adaptação de livro homônimo de Gabriel Garcia Marques, “Amor nos tempos do cólera” mistura o tom soturno e instigante de “Cem anos de solidão” com a eterna esperança de um Peten Pan. Esperança de quem sabe que vai ser criança para sempre, mas será a única criança eterna. Esperança de quem sabe que vai amar para sempre, mas que pode ser o único a sentir o amor eterno. E talvez não correspondido.

Personagens perdidamente apaixonados, mas impossibilitados de amar. Um romance impossível para nenhum “Romeu e Julieta” botar defeito. Tudo começa quando um jovem que trabalha no telégrafo, Florentino, se apaixona por uma moça – Firmina - filha de um vendedor de mulas que acabou de se mudar para a cidade, em Cartagena, na Espanha. O amor nasce à primeira vista, e os dois começam a trocar cartas proibidas cheias de poesia. Não vou estragar o desenrolar da trama com mais informações. É uma obra que merece ser vista, ou lida, e apreciada.

Florentino sofre de amor. O sentimento puro que arranca mais pedaços do que a guerra ou a epidemia de cólera que tanto matavam no mundo real. O tempo passa, as conjunturas se modificam, mas o amor permanece. E machuca.
O diretor Mike Newell leva a trama com maestria do início ao fim. Talvez pela vontade acumulada ao longo dos três anos que ele precisou até que Gabriel García Marques autorizasse a filmagem da história...

Por meio do sofrimento, o protagonista Florentino consegue mostrar a essência do amor. Do amor transcendental, que passa por todas as fases dentro da carne e fora dela. O amor que dói, que mata, que alegra, que ilude, que titubeia e, principalmente, que não tem fim. Ao mesmo tempo, o amor é humano e se esconde atrás das imperfeições do ser. E sem clichês ou pieguice.

Pena que a filmagem em inglês tire um pouco da intensidade da trama. Afinal, a história se passa em Cartagena e os diálogos naturais seriam em espanhol, o idioma da paixão e de García Marques.

Bom, em inglês, espanhol ou português, o nosso atual tempo repleto de cólera (sentimento) tem matado os bons momentos mais até que o cólera dos tempos do filme. E o amor, sobreviverá?
(Fernanda Barbosa, São Paulo)

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Um andar passageiro


A moça de meia-idade não olha para os lados quando entra alguém no elevador. No seu elevador.
"Qual o andar?", repete em intervalos não programados. O questionamento me recorda certa ocasião, em que perguntei qual era o andar de um amigo a um porteiro e o sujeito, impetuoso, levantou com riso frouxo no queixo, prestes a estourar, e pôs-se a imitar atabalhoadamente alguns passos do inquilino. Mas esse é outro caso. O de hoje é da ascensorista de cabelos presos que faz palavras-cruzadas de pé. Trabalha em um shopping de Curitiba - talvez o mais badalado deles - há sete meses. "Canso de ficar sentada," diz Selmira, sem erguer a cabeça. Apesar da negativa inicial, tem um sorriso quase fixo no rosto e alerta com vibração o andar tão desejado: "G3!".
Sete ou oito pessoas acotovelam-se educadamente até encontrarem o lugar perfeito para permanecer os próximos 30 segundos. Nenhum, no entanto, invade a privacidade e nem sequer chega perto da cadeira da mulher que já subiu e desceu tantas vezes na vida. O objeto, de couro e com hastes enferrujadas é giratório, ironicamente. Em metade das paredes do elevador há espelhos indiscretos. Na outra metade, nada, ou tímidos anúncios publicitários. Quando sozinha, giraria a cadeira? Não, há câmeras, não poderia fazer isso. Ao lado de seus pés, uma sacolinha de mercado amarela com o kit-elevador: comidas – besteirinhas, como bolachas e guloseimas – remédios genéricos, papel higiênico e livros de auto-ajuda.
A vida se passa ali, naquele sobe-desce perpétuo. Do L4 ao G3, por entre uma palavra mais difícil a ser descoberta, que inclusive precisou daquela olhadela marota no final da revistinha. Os agradecimentos não são muitos, apesar de todos os andares serem expelidos como se fossem o fim de uma missão por ela liderada. É nesse momento que sua cabeça volta à posição normal, mirando a revista apoiada no colo, colocando a caneta Bic em posição de ataque e se despedindo de cada um com o canto dos olhos.

(CRIS CASTILHO, de Curitiba)